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O Buraco do Mimi - por Rodrigo Santos

As escavações do metrô chegam ao subsolo de um cemitério construído às pressas para abrigar as vítimas do incêndio de um circo, vizinho a uma casa assombrada. Existem sítios que não querem ser acessados...

Foto: Reprodução internet
Foto: Reprodução internet

Era dia lá em cima, mas onde eles estavam a luz não chegava mais, só era possível enxergar com ajuda de lanternas.


— Cuidado na descida aí, padre!

— Eu não sou mais padre, amado.


O grupo que acompanhava Mário Sérgio estava bastante reticente, e se movia como se não quisesse avançar. A poucos metros dali, tinha morrido o jovem Victor, o Vitinho, vítima do Buraco do Mimi, como agora a imprensa o chamava.


“Buraco do Mimi”. Depois de muitos anos, finalmente a Linha Três do metrô tinha saído do papel. A promessa da construção de um metrô que ligasse Niterói a São Gonçalo pelos trilhos tinha eleito pelo menos uns três governadores, mas nada de acontecer, até agora. As escavações começaram (por Niterói, claro) e até ali a obra andava bem, o trem já circulava até a estação Mauá.


Foi no caminho para a estação Antonina que a coisa desandou. Ou desabou, em duas ocasiões diferentes. Na primeira vez, morreram três pessoas soterradas. Na segunda, deu tempo para todos os trabalhadores saírem, mas uma inspeção posterior revelou um corpo nos escombros que não deveria estar ali, pois não fazia nem parte da empresa de escavação. Quando o menino Victor tirou a própria vida, as coisas tomaram outro aspecto.


Vitinho foi encontrado na manhã seguinte. Tinha o rosto arranhado, os olhos arrancados e em sua boca o sangue coagulado parecia um estranho e espesso mingau cor de vinho. Não tinha batido o cartão de saída, o que significava que havia pernoitado na obra. As fotos obscenas estampavam a primeira página d´O Popular, e a reportagem assinada pelo sórdido Arnóbio Presença se pretendia a desvendar o mistério: a escavação tinha parado exatamente sob o Palacete do Mimi.


O Palacete, construído no início do séc. XX, chegou a ser um glamoroso cassino nos anos 20. Mesmo depois da proibição do jogo, funcionava clandestinamente, já sob a batuta de Emir Porto, o “Mimi”. Palco de festas do grand monde em 50, tinha até chuveiros dourados. Diz-se que recebeu grandes figuras da cultura nacional: Villa-Lobos, Mário de Andrade, Di Cavalcanti e Tarsila do Amaral, além de influentes políticos fluminenses.


O aumento da repressão policial contra o jogo clandestino desanimou o empresário, e a construção do cemitério São Miguel em 1961 para abrigar as vítimas do incêndio do Gran Circo Norte Americano foi o limite: Seu Emir ficou desgostoso e abandonou o palacete ao tempo, que o transformou lentamente em ruínas.


— A gente só vai até aqui, Padre.

— Já disse, rapaz, não sou mais padre.

— Padre... Desculpe, Sr. Mário Sérgio. O senhor ainda vai precisar da equipe?


O homem de capacete branco procurava disfarçar a sua tensão, mas apertava os dedos contra a palma da mão até os nós empalidecerem. Atrás dele, sob a luz da lanterna, Mário Sérgio via dois homens e uma mulher, operários da obra. Não era um caminho apertado, as máquinas haviam aberto um túnel já considerável, de alguns metros de altura. Eles pareciam até pequenos. Um dos homens se benzia, com um terço na mão; a mulher inspirava ruidosamente e soltava pela boca.


— Acredito que não, meu caro. Na verdade, não sei exatamente o que eu vim fazer aqui.

— O senhor veio tirar a coisa ruim, não veio? — Disse o homem que trazia o terço. — Pra obra continuar?

O engenheiro interveio.

— Não tem coisa ruim aqui não, seu Ramon. O padre veio só dar uma olhada, a pedido do próprio prefeito. E só. Dona Sandra, a senhora está bem?


A mulher agora balançava de leve o corpo, para frente e para trás, em um movimento pendular.


— Seu padre... Acho melhor o senhor não... Tem um menino falando aqui, dizendo pro senhor voltar pra cima.

— Misericórdia, minha nossa senhora! — Ramon se benzia.

— Deixe de bobagem, Dona Sandra!

— Que menino é esse? — Mário Sérgio perguntou, curioso.

— Deve ser o Vitinho. — Disse o outro homem do terço.

— Não... Não é Vitinho não. É outro egum.


A iluminação baça das lanternas mostrava apenas o branco dos olhos de mulher de meia idade. Suas mãos agora estavam pra trás, joelhos levemente flexionados.


— Virgessanta que a Dona Sandra tá recebendo entidade!

Ramon (o do terço) falou e correu. O engenheiro olhou para Mário Sérgio como se precisasse urgentemente ir ao banheiro, e o ex-padre percebeu a angústia do grupo.

— Podem ir. Eu me viro aqui.

Dona Sandra começou a se mover, e a se dirigir para o ponto de onde vieram com seu andar meio cambaleante. O engenheiro apertou a mão de Mário Sérgio.

— N-Não pega celular aqui não, tá, Padre? A gente volta pra te buscar em quanto tempo?

— Acho que não precisa, eu vou fazer apenas uma oração e volto. — Mário Sérgio tinha desistido de recusar o tratamento eclesiástico.

— Não, não. Muita coisa pode acontecer nesses canteiros de obra. Em meia hora a gente volta, tudo bem? O senhor não fuma não, né?

Mário Sérgio riu, desconfortável, estranhando o questionamento àquela altura do campeonato.

— Se eu fumo? Não. Por que a pergunta?

— É que não pode acender cigarro aqui. Os gases podem entrar em combustão.

Mário Sérgio riu.

— Não se preocupe, podem ir em paz. Daqui a pouco a gente se vê.

— Eu fico. — Disse o outro homem, que até agora tinha ficado calado.

O capacete branco do engenheiro então fugiu do foco da lanterna, levando seu próprio foco para a saída do buraco. Agora eram só Mário Sérgio e o outro rapaz.

— Agradeço a companhia, meu caro. Como é o seu nome?

— É Adílson, mas eles me chamam de Dequinha.

— Obrigado então, Seu Adílson.

— Pode me chamar só de Dequinha, padre.


Depois da morte do Vitinho e da série de reportagens d´O Popular, o jornal mais vendido em São Gonçalo, as lendas se espraiaram. Alguns falavam que o rapaz tinha sido possuído, outros que ele já era meio doidinho. A empresa perdeu uma parte significativa de sua equipe, muitos nem voltaram para fazer o exame demissional. Não querendo perder o contrato com o governo do Estado, insistiram. Primeiro, ameaçaram de demissão por justa causa; depois, prometeram um abono salarial. Muitos voltaram, a vida na boletolândia não compreende subjetividades e medo de fantasma.


A semana correu normal. O túnel avançou alguns metros sem nenhuma ocorrência de desabamento ou assombração. Os peões até brincavam, pegavam no tornozelo do colega gritando “olha o fantasma do Vitinho!”, e riam da reação.


Era de tarde, uma sexta-feira. Quem estava lá dentro não fala sobre o acontecido, muitos não podem sequer serem encontrados. Mas a equipe que estava do lado de fora tem muito o que contar. “Pareciam zumbis”, disse um. “Eu nunca vi ninguém com aquela cara, e de repente eu vejo vinte!”, falou outro.


Todos os funcionários que estavam no túnel saíram correndo de uma vez só, apavorados. Não se sabe o que eles viram, ou o que passaram, mas nenhum voltaria para aquele buraco, nem sob a mira de uma arma. Prato cheio para O Popular, que só faltou reeditar o bebê diabo em suas narrativas, em clara homenagem ao Notícias Populares. Cobrado, o prefeito (muito católico) foi taxativo: aquilo era uma situação para um líder espiritual.


Nenhum padre aceitou, óbvio. Século XXI, 2025, o que a Igreja queria menos era se meter em tretas de exorcismo. Mas o velho não sossegou; afinal, queria que seu filho assumisse a sua cadeira, já que não poderia concorrer a uma nova reeleição. E achou Mário Sérgio, que havia largado a batina mas ainda tinha bastante respeito pela comunidade católica e, principalmente, visibilidade na mídia.


— Por que o senhor deixou de ser padre?

— Sei lá. Apenas perdi a fé.

— Tem alguma relação com esse menino que a moça viu do seu lado agora há pouco?


Mário Sérgio nada respondeu. Ele também via o menino, o menino que correra na sua frente e fora assassinado sem que ele nada pudesse fazer.

Mas a fé ele havia perdido antes.


Os fachos da lanterna avançava lentamente. O tatuzão — assim era chamada a máquina que fazia o primeiro trabalho de escavar a terra — já havia passado, o trabalho que havia sido abandonado era o de fortalecer os túneis.


— Pelas minhas contas, a gente está debaixo do cemitério.

— Mas não era o Palacete do Mimi?

— Também. Na planta que nos apresentaram, o túnel do metrô passa entre as duas propriedades, na direção do Bairro Antonina. Povo fala...

Mário Sérgio parou.

— O que o povo fala?

— Ah, que o Mimi fez um pacto pra não perder as terras. Ele ganhava muito dinheiro, alugava a casa, vivia no luxo. Não queria perder. Teve um tempo que uma molecada ia ouvir música e beber vinho vagabundo lá, várias histórias de gritos e vozes estranhas.

— Cemitérios sempre geram esse tipo de comentário.

— Ainda mais esse. Muitas almas atormentadas aqui, seu padre. Muitas almas.

Andaram mais um pouco em silêncio, até que no final da luz projetada pelas lanternas se via um fim.

— Você está sentindo esse cheiro?

Mário Sérgio puxava o ar, carregado do cheiro de terra molhada e esgoto há alguns minutos. Mas agora tinha algo diferente. Parecia... perfume.

— Que cheiro?

— Um cheiro estranho... Doce, até.

— Tô sentindo nada, padre.

— Já disse, seu Adílson, não sou mais padre.

— E eu falei pro senhor me chamar de Dequinha.

— Justo. Dequinha. Dequinha, você está vendo aquilo-


O homem não estava mais ao seu lado. Mário Sérgio estreitou a visão para tentar identificar o brilho que havia identificado no final do túnel. O cheiro aumentou. Ele reconheceu, era o perfume “Dreams”, da Boticário. O mesmo perfume que Tiago usava, perfume feminino que ele afanava da mãe.

Tiago. Mário Sérgio fechou os olhos, e aspirou com volúpia.

— Dequinha...


Quando abriu os olhos, não estava mais no túnel. Era uma festa. Pessoas passavam com seus trajes cheios de pano, fazendo um “shuish shuish” de pano roçando. A música vinha de uma pequena banda de jazz: bateria, piano, pistom e sax. Mário Sérgio não era um grande conhecedor de música, mas reconheceu a melodia de uma canção de Charles Mingus.


“Devo estar alucinando por causa da falta de oxigênio...” — pensou Mário Sérgio. Puxou o ar mais uma vez, com força. Cheiros de champagne, cigarro e perfumes, de onde identificou (agora mais fraco) o Dreams.


— Tiago!

Tiago vestia um smoking, e segurava uma taça de champagne.

— Marinho! Que surpresa!

Trocaram um abraço caloroso.

— Você está bonito. Essa versão jovem idoso lhe cai bem, hein? E essa barriguinha?


Tiago sempre fora divertido, foi uma das coisas que fundamentou a amizade deles. Mário Sérgio ria de suas piadas, gostava de estar com ele.

Mas havia alguma coisa de errado.


No túnel, as órbitas de Mário Sérgio estavam ocas. A lanterna havia caído, e alguma coisa parecida com um inseto subia em seu corpo. As patas finas e peludas, como quelíceras de uma aranha, terminando em ponta, percorriam seu corpo e deixavam um rastro de pequenas manchas de sangue.


— Tiago, que festa é essa?

— Esta? — ele abriu os braços, como se apresentasse o recinto. — Esta é uma festa permanente. O Emir gosta assim, bastante gente na casa, música boa, bebida em cascata e amor em profusão.

Tiago tocou o braço de Mário Sérgio.

— Você não deveria ter entrado no seminário.

Um garçom passou, e Mário Sergio pegou a taça de champagne.

— Eu não tive opção.

— Eu era a sua opção.

Tiago apertou o braço de Mário Sérgio, sob a manga do smoking – e foi quando percebeu que também estava vestido à caráter para a festa.

— Vem! — disse Tiago, pegando-o pela mão. — Dizem que o Mimi tem uma coleção de insetos aqui, em algum lugar!


Os dois homens passearam pelo palacete, iluminado de sorriso e jazz. Viram a coleção de insetos, beberam mais champagne. Em algum lugar da sua mente, Mário Sérgio sabia que aquilo era ilusão, mas não queria sair dela. Ele nunca mais tinha visto Tiago, depois da escola. Era o grande “e se?” que pairava sobre sua cabeça como uma jaca madura. Mesmo quando abandonou a batina, não teve coragem de procurá-lo. Não sabia nem se estava vivo ou morto.

Até aquele momento.


Na sacada do segundo andar, observavam algumas pessoas já tiraram as roupas e pularem na piscina, homens de samba-canção e mulher de combinação.

— Marinho...

Mário Sérgio olhou para Tiago.


O bicho que parecia uma barata gigante, com mais patas que um gongolo, agora aproximava sua boca do rosto de Mário Sérgio, paralisado. As unhas afiadas envolviam quase todo o seu corpo.


— Eu sempre quis te beijar, sabia?

— Ah, Tiago, que isso...

— Sério. — Manteve o olhar firme, dentro dos olhos do amigo. — Quando você foi para o seminário, minha vida meio que perdeu o rumo, sabe? Você foi meu primeiro amor.


Mário Sérgio não sabia o que responder, estava paralisado. Tiago se aproximou, e seu lábios se tocaram. A língua fina de Tiago passeava pelo lado de fora de sua boca, lambendo o cantinho dos lábios antes de entrar e encontrar sua própria língua. Mário Sérgio se rendeu, e as línguas iniciaram seu molhado circuito.


Da boca do inseto, partiu uma pequena tromba, que se acoplou na boca de Mário Sérgio. Enquanto ele mexia a sua língua entre vermes e pedaços de material orgânico, uma pequena sonda descia através de sua garganta.


— Uau.

Tiago passou a própria língua nos lábios e sorriu.

— Uau mesmo.

— Eu nunca pensei que-

— Shhh. Não estraga.

Tiago tirou um maço de cigarros do bolso do blazer, um Continental sem filtro. Puxou um cigarro, bateu com ele no dedo indicador, e sacou do isqueiro.

— Você fuma?

Mário Sérgio ainda lembrou alguma coisa sobre fumar, que a chama podia-

— Não!

Mas a mão de Mário foi mais lenta que os dedos de Tiago, que rolaram no Zippo.

Tudo se acendeu, como um filme antigo exposto ao fogo. A casa, as pessoas, a banda, a piscina, parecia que uma grande bola de fogo vinha arrastando e destruindo tudo em seu caminho.

Tiago colocou o cigarro na boca, e sorriu.

— Calma, em breve você estará aqui conosco, e seremos felizes como nunca nem sonhamos. — disse, antes de seu rosto entrar em combustão e seu sorriso se derreter como borracha perante os olhos de Mário Sérgio.

E foi a última coisa que aqueles olhos viram.


Na entrada do Buraco do Mimi, as pessoas se aglomeravam para tentar ver alguma coisa. Os moradores relatavam uma grande bola de fogo, que surgiu no meio da noite, antes de tudo desabar. A imprensa, voraz colhia depoimentos.


— A gente deixou o padre sozinho lá. Ainda avisei para ele que não fumasse, que os gases podiam entrar em combustão... — o engenheiro explicava para a televisão.

— Eu sabia que era coisa ruim, seu moço. A dona Sandra recebeu uma entidade e falou que estava vendo o demônio do lado do padre, mas ele não se importou. Eu sabia! — dizia Ramon, manipulando o terço em suas mãos.

— Tira uma foto ali, Jereréu! Já até vejo a manchete: “Coisa Ruim chamuscou a beirola do Buraco do Mimi!” — dizia Arnóbio Presença, empolgado, enquanto seu fotógrafo tentava buscar um ângulo melhor.


Depois da explosão que destruiu o túnel já escavado, a solução foi fazer um desvio pelo Mutuá, adicionado mais uma estação, a 18 do Forte. Muito religioso, o prefeito viu a morte do padre como um sinal de que nada deveria ser construído ali.


O corpo de Mário Sérgio nunca foi encontrado. As buscas foram apenas protocolares — afinal, como buscar um corpo debaixo de um cemitério? — e dadas como inconclusivas assim que a lei permitiu. O progresso seguiu seu curso, e em pouco tempo a explosão do Buraco do Mimi era só uma notinha de página dois do jornal O Popular (que ainda tentava associar a explosão a causas sobrenaturais, sem sucesso).


E sem o metrô, em algum lugar, a festa continuava, com a banda cometendo “Work Song” do Charles Mingus, antigos amores se reencontrando e se beijando.


E estranhos insetos arrastando suas quelíceras por debaixo da terra.



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