O Conciliábulo Malandrino, ou um réquiem para um punguista - por Sammis Reachers
Foi num domingo feito hoje. Os bonecos começaram a chegar desconfiados, tanto pelo vício do ofício quanto pelo inusitado do evento. O palco das exéquias, um terreno baldio, estrategicamente longe de olhares & orelhas inoportunos.
Uma saudação aqui, um qualé acolá, e a malandragem devagar foi se acomodando.
De todos, resolveu-se: quem teria a primazia do verbo seria o único daqueles putianos que, é de espanto, possuía carteira assinada. Pois saiba você, amigo leitor: vagabundo respeita trabalhador. Era o popular Magu do Alcântara, que batia ponto no estoque do mercado Assaí, feito raposa gerenciando galinheiro.
— Amigos e compadres, uma muito boa tarde. Como vocês sabem, estamos reunidos aqui para celebrar a memória daquele que foi o melhor de nós.
Sim, o melhor de nós, pois o pioneiro. O melhor de nós, pois foi mestre de muitos aqui. E até pai e padrasto de alguns. E quem não aprendeu com ele, aprendeu dele, pois muitas manobras que a gente usa no dia a dia, no ganha-pão, ele as criou ou inaugurou em nosso município, talvez em nosso Estado.
Quantos já ouviram falar do grande incêndio no Gran Circus em Niterói, no longínquo 1961? Enquanto vidas se perdiam, ele enriquecia, madeira de lei endurecido por todo aquele fogo. Semideus do empreendedorismo, na crise máxima, ele viu a máxima oportunidade: Afanou 46, QUARENTA E SEIS, SENHORES!!!, carteiras. E saiu vivo para contar a história. Ali, naquele circo em chamas, nasceu o patrono e a lenda dos ladrões gonçalenses. Aquele cuja memória hoje celebramos.
E o rol de bravuras se seguia, de fazer arroxear o próprio demônio.
Enquanto discursava com ousadia e sentimento o insigne abortivo do bairro Engenho Pequeno, um peralta, Catito, fiel ao ofício, tentava controlar sua pulsão ou proatividade no duro métier de bater carteiras e celulares de patos ou, na fúnebre falta destes, de gansos. Ali só havia gansos, mas o instinto, em Catito, era deus forte.
Divisado o alvo, um carteirista (e celularista) que fazia ponto no centro do Rio, já ferido pela manguaça, empapado nos vapores alcoólicos que aquele dia de luto (nem por isso) demandavam, o rouxinol de Satã se acercou e, na clássica esbarradela, moveu o corpo do bruto enquanto sua destra encaçapava um iPhone do último, no talento. Daquele modelo, um “cabaço”, dourado e com uma semaninha de lançado na praça, o punguista só vira em grupos de rolo de Facebook, desses onde a tropa do corre desovava os ganhos. Pra quê esperar outra chance?
Talvez pelo álcool, mas mais acertadamente fosse pela desprevenção, por estar "entre os seus", o adiposo não acusou o golpe.
Mas, como referimos, aquele galinheiro estava locupletado de gansos, pescoçudos e mordedores, todos eles. Percebendo a heresia daquele ato de extremada torpeza, desferido não em momento inadequado, que isso não havia entre ladrões, mas contra um associado, Roberval, ladrão de autos e mantenedor de dois desmanches na Trindade, às costas do Sétimo Batalhão de Polícia, onde tinha alguns associados, alto prelado no mundo dos ladrões, deu alarma:
— Olha aí esse fxxxxdxpxxa, esse cxxno, esse pelego, meteu a mão no telefone do amigo! Pau nele! Pau nele!!!
— Ah, vale is5so!??? – gritou uma das lideranças do movimento, e o berro foi a senha para a democratização das oportunidades.
O que se seguiu foi um espetáculo que divertiu meio inferno, que parou pro espetáculo: o colegiado de ladrões, senhores dos caminhos de metade da região metropolitana do Estado do Rio, se engordaram numa pancadaria obtusa, temperada a areia nos olhos, sarradas e canivetes. E mais, explodindo de primitividade, dando vasão àquilo para o que suas infelizes mães os pariram, aqueles pouco menos de oitenta larápios se envolveram no maior jogo de ladrão-roubando-ladrão que o sul global já vira, após as aventuras da pirataria inglesa roubando ouro dos ladrões colonialistas espanhóis. Era um soco aqui e uma apalpadela acolá, um coice de trivela num, e um catar-um-cordão-de-prata no chão, num mesmo e acrobático movimento.
Ortega y Gasset, filósofo fatalista descendente dos tais ladrões de ouro espanhóis, dizia que um homem é um homem e suas circunstâncias. Pois um ladrão é um ladrão e suas oportunidades, na Câmara, no Senado, no Planalto ou num arranca-rabo em terreno baldio: velhas rixas encontraram curso de resolução, com desafetos se farejando e duelando em meio à peleja.
— Valei-me Seu Zé!, desengasgou-se um fiel após ter bolsos e pescoço esvaziados, a fuça inchada de tanta tapanca, como se ladrão ajudasse ladrão contra ladrão. Não sem cobrar caro na saída, mas isso lá preocupa os pilantras?
E o furdunço alava as poeiras: Tapas bloqueados eram seguidos por um pinçar de mãos, arrancando dos dedos do agressor anéis e alianças que eventualmente portasse. Arte ninja!
No alto do festejo, apogeu daquela liça medieval, o conluio ou conclave ou conciliábulo malandrino foi debelado pelo toque da trombeta quadricórnea do Estado, sonido a que todos, já nas barrigas das mães desnaturadas, aprenderam a temer: o soar de uma sirene.
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Sammis Reachers é poeta, escritor e editor, autor de dez livros de poesia e três de contos/crônicas, organizador de mais de quarenta antologias e professor de Geografia no tempo que lhe resta – ou vice-versa. Acaba de lançar um livrinho de bolso, Sabenças & Sentenças da Missão: Frases e provocações missionais. O autor e sua obra estão quase todos aqui: https://linktr.ee/sreachers