Eles nunca subiram em árvores
- Apologia Brasil
- há 2 dias
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Por Sammis Reachers

Eles não sobem em árvores. Bom, nem nós. Mas neles é pior, o baú da memória está nu: eles nunca subiram. Não há essa função em seus smartphones, ou app dedicado no play store. Nem game de escalada em árvores temos, embora haja até game que simule fábrica de cupcakes.
Cresci numa área periférica, miscigenada entre o puramente rural e o deficitariamente urbano. A árvore era uma amiga e uma certeza de qualquer ponto da paisagem.
Subir em árvores era manobra natural, filha primogênita da peraltice que fere toda criança. Claro, havia o subir por puro lazer, esportivo, e havia o utilitário: a coleta de frutas, ou desemaranhar uma pipa agarrada. Mangueiras, goiabeiras, jaqueiras, jambeiros e cajazeiros, e o que mais Deus propusesse de frutas nativas ou exóticas (exótica é a que veio de fora de nossa pátria, e Deus, ah, é um imenso proponente). Havia hierarquia arbórea: Dividíamos as árvores em fáceis, médias, difíceis e impossíveis de subir. Mas, as impossíveis tinham lá seus Quixotes: os moleques especializados em escalada arborescente. Aqui tínhamos quem subisse até em coqueiros e palmeiras, como a macaúba, cujo coquinho-catarro era iguaria bem disseminada e apreciada na região. No mais, o instinto gregário e de divisão laboral prevalecia: Eu, mau escalador, quantas vezes ficava no solo, só aparando as frutas que os hábeis lançavam lá de riba? Duma vez que quase morri aparando tentando aparar jacas (!) dá uma crônica daquelas hilárias. Outra hora.
Há pouco mais de uma década, fazendo uma caminhada com meus sobrinhos de então uns 13 e 10 anos, respectivamente, indaguei sobre o tema. Embora criados na mesma região que eu, o peso geracional carregou a mão sobre os moleques, e eles nunca haviam subido em sequer uma árvore na vida. Havia um pequeno pé de jamelão no caminho (caminhávamos d Tribobó a Maria Paula), e, ao incentivá-los, percebi a verdade do relatado, na imperícia desconcertante dos moleques.
Outro dia vi um texto desses que circulam em grupos de Zap ou páginas de coroas do Facebook, que despejava uma verdade no leitor: Você não vê mais crianças com gesso. How, espere aí: Isso é bom, isso é ótimo. Certo? E isso é bastante ruim. Gesso remedia fraturas, fraturas demandam tombos, tombos demandam movimento, risco. Vivência fora da(s) ilha(s) de conforto e eletrotecnia.
Posso subir sobre uma de minhas árvores diletas, sempre ele, o pé de jamelão, e apregoar sobre a necessidade urgente de reconectar nossas crianças com a natureza crua (leia-se: não mediada), mas isso é chover no molhado.
E como subir numa árvore que não existe? A suburbana cultura da árvore no quintal deixou de existir, substituída por funcional concreto, palmeiras e coqueiros interditados à escalada, a piscina ou a área de churrasqueira – vendida pelas empreiteiras de forma padronizada, pouco importa se o cliente aprecie – ou vá fazer uso – da tal churrasqueira. As empreiteiras vendem suas casas conjugadas/geminadas dentro do padrão de máxima utilitariedade e mínima espacialidade. Tal cultura não-arborizada meio que se espalhou pela mentalidade geral, nos subúrbios de algumas de nossas principais cidades e metrópoles. Você pode andar por lugares como o distrito maricasense de Itaipuaçu, com casas instaladas em terrenos de tamanho regular, numa configuração ideal para suportar de um ipê a uma mangueira, passando por toda a inumerável família de árvores e arbustos menores. Mas é possível caminhar por quarteirões sem ver quase copa alguma. Somente telhados coloniais e concreto. Quintais perfeitamente mortos – e funcionais. A Terra paga o preço, e o homem. E as crianças.
Há toda essa coisa das gerações e suas peculiaridades. Baby Boomers, Z, X, Alpha etc. Por sinal, neste 2025 nasce justamente uma nova: a geração Beta. Sim, delimitações úteis – mas até certo ponto: isso tem muito de simples presepada (ah, você já imaginava, hum?), muita coisa conceituada a nível “beta” (provisório/experimental). Assim como – fruto, reflexo? – as incansáveis delimitações e segmentações de problemas mentais que pululam e fazem explodir de páginas os manuais de psiquiatria, e de grana os editores, psicólogos e expedidores-de-laudos em geral. Saiu uma nova atualização há pouco, também.
Voltemos ao tema, vamos de uma polêmica por vez. Precisamos de árvores e de trepadores.
A internet trouxe luz, com perfis de amantes de árvores e frutas, nativas ou exóticas, que trocam informações e vendem mudas, via SEDEX, para todo o Brasil. Sim, quase toda fruta que você (não) conhece pode ser adquirida em muda, chegando embalada no seu portão. Outro dia vi um colecionador brasileiro de frutas (bem, para brincar disso você precisa ter um sítio ou fazenda) que foi à Indonésia em busca de conhecer novas espécies (sul e o sudeste asiático são um dos hotspots fruteiros da Terra). Há empresas como a Safari Garden (@safarigardenplantas) e a Colecionando Frutas (https://www.colecionandofrutas.com.br/), que vendem fruteiras sortidas pelo correio. E há perfis como o do botânico e paisagista Ricardo Cardim (@ricardo_cardim), atualmente badalado, e que ensina, em curtos vídeos no Instagram ou Tik Tok, noções de arborização, paisagismo e botânica aplicada aos temas citados.
Iniciativas fundamentais para resgatarmos a cultura da árvore, e isso, os manuais não vão lhe ensinar, passa pelo moleque e pela moleca, pela construção, neles, da familiaridade que demanda experiências. Leve-os ao parque da cidade, àquele sítio que cobra por diária. Uma trilha, uma caminhada na mata. A árvore na pracinha.
No mais, é restituir o que o progresso dinamitou, a árvore ou arbusto em seu quintal, na calçada, no terreno baldio em frente. Compre. Plante. Eles entregam embalado, em seu portão. Muitas prefeituras distribuem mudas gratuitamente.
Como escrevi num poema, as árvores são “playgrounds patamarizados”. Mas eles, os alfas e betas, precisam descobrir, transitar entre os patamares, arriscar o tombo. E ela, a árvore, precisa ser re-introduzida na sociedade, em seus solos e convívios, feito um parente que passou tempo demais no exílio. Fazer as pazes conosco e ser apresentada a nossos rebentos.
Estou pensando em inaugurar uma “oficina de escalada de árvores”. A cada quinzena, numa APA ou Horto Botânico. Para horror de algumas mães e avós, médicos e autoridades. Bem, é preciso empreender e isso acontece – e prospera – no solo do risco.
Falando em risco, este sim protuberante, o geoterror climático, assevera: É urgente nos reconciliarmos com as árvores, e salvar o(s) que pudermos.

Sammis Reachers é poeta, escritor e editor, autor de dez livros de poesia e três de contos/crônicas, organizador de mais de quarenta antologias e professor de Geografia no tempo que lhe resta – ou vice-versa. Acaba de lançar um livrinho de bolso, Sabenças & Sentenças da Missão: Frases e provocações missionais. O autor e sua obra estão quase todos aqui: https://linktr.ee/sreachers
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